quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Distinguindo heróis de celebridades




Ainda a copa
Maria Clara Lucchetti Bingemer


Já com a classificação do Brasil garantida, sinto o desejo de descansar um pouco de Copa do Mundo como único assunto de todos os noticiários.  Em vão.  Parece que ninguém consegue falar, pensar ou produzir outra coisa.

Aliás, não começou apenas agora.  Há tempos, seguramente há mais de um ano, as especulações sobre a Copa, quem seria selecionado, as notícias sobre a vida íntima e não tão íntima dos jogadores , suas famílias, namoradas e amigos, etc. povoava os veículos vários dos meios de comunicação.

E nos anos anteriores também.  Não diretamente direcionado à Copa da África do Sul, mas a propósito dos vários campeonatos regionais, nacionais, latino-americanos, etc.  E também, por que não? a propósito das apostas na bolsa de valores das celebridades esportivas. Cada vez que um jogador era comprado a peso de ouro por outro time, tínhamos que ler todos os detalhes dessa transação, juntamente com as reações do círculo familiar, os palpites dos comentaristas, etc.

Mas o que fazer?  Assim acontece com as celebridades.  Estamos cercados delas por todos os lados e são elas que povoam nosso cotidiano e – aí é que está o problema – nosso imaginário.  Aos jovens de hoje são propostos os famosos, as celebridades, os que recebem salários milionários apenas para chutar uma bola, ou para ganhar o Big Brother, ou para estrelar uma novela.  Os filhos do operário honrado que sua de sol a sol para receber no fim do mês um magro salário que mal dá para pagar suas contas os admiram e sonham um dia viver sua vida glamorosa cheia de êxito e dinheiro. 

Não importa a formação que tenham, sua cultura ou inteligência, sua capacidade de articular duas idéias.  Basta o pódio para onde a mídia e a máquina do consumo os guindou sem que eles tivessem feito muito esforço.  Assim é que nenhum tem o menor pudor de admitir diante das câmaras de televisão que fugia da escola para jogar bola e por isso não terminou seus estudos.  Ou ser flagrado em farra monumental com parceiros de vários sexos e ter seus estados psicológicos se tornarem pauta de discussão nas páginas dos jornais.

São eles os paradigmas desta líquida pós-modernidade que fazem até as torcidas várias se esquecerem do esporte em si mesmo, atividade sadia e bela que eles deviam honrar.  Tornaram-se ícones de um mundo irreal e injusto, que os expõe incessantemente a fim de que incitem os que por eles são fascinados a entrar na mesma espiral que os domina. 

Toda generalização é injusta e mesmo odiosa.  Por isso, não gostaríamos de aqui, generalizar. Mas é impossível não sentir arrebatos de indignação ética ao ver a cobertura da Copa na África do Sul, país símbolo da luta pela liberdade, totalmente tomada por esses aspectos distorcidos e mesmo irrelevantes das pessoas dos jogadores.  Saber a quem estão namorando neste momento; tomar conhecimento que ganharão o equivalente a 600 mil euros se o time for campeão ...e outras coisas igualmente escandalosas e injustas...sinceramente não é tema para ocupar todo o noticiário durante dois meses.

Enquanto isso, uma figura como Mandela foi posto em evidencia no primeiro dia e depois escassamente recordado.  Esta sim é uma figura inspiradora, digna de toda admiração e respeito.  Este sim deveria estar constantemente na mídia lembrando ao mundo o que é a consciência como último e derradeiro foro do ser humano e até onde pode chegar o ser humano em dignidade e nobreza quando faz uso para tal de sua liberdade.

Só resta ter saudades dos tempos em que nosso imaginário era povoado de heróis, de santos, de testemunhas dos mais variados credos e filiações.  Hoje, nosso céu só é constelado de outro tipo de estrelas: as celebridades e os famosos, heróis fictícios e muitas vezes falsos, fabricados pelo mercado e pela mídia, que não nos levarão a condutas nobres e não alimentarão em nós nobres ideais.

Sem querer jogar água fria na alegria pela vitória brasileira nem negar que o futebol é um belo esporte. Mas...por isso mesmo...é necessário deturpá-lo e magníficá-lo desta maneira e a este ponto?

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