Por que a Anunciação foi feita por um anjo? Por que dirigida a Maria e não a São José? Perguntas levantadas e respondidas por Santo Tomás de Aquino revelam a beleza da ordem e da hierarquia.
Propriamente Santo Tomás é um sol da Teologia católica. Ele tem uma inigualável capacidade de explicar, de forma simples e contundente, aquilo que parece extremamente complicado. A leitura da Summa Teologica, se bem que exija uma certa preparação, não deixa de ser, além de amena, muitíssimo instrutiva.
Justamente estava eu lendo uma série de perguntas que ele formula inicialmente, segundo seu método de tratar os temas, a respeito de Nossa Senhora. E a primeira delas chamou-me a atenção pelo modo curioso como é formulada na Parte III, questão XXX, art. 2. Resumirei assim o problema para os leitores de Catolicismo: Deus faz tudo levando em consideração a hierarquia, respeitando os direitos daquele que é mais. Ora, Maria Santíssima, por ser a Rainha dos anjos, logicamente era mais do que eles. Logo, para comunicar a Maria Santíssima que Ela seria a Mãe de Deus, não deveria ter sido enviado um anjo — portanto, um inferior, súdito da Rainha — mas deveria tê-lo feito o próprio Deus. Assim se respeitaria a hierarquia, segundo a qual são os superiores que instruem os inferiores.
Essa primeira pergunta já me deixou sem saber qual a maneira de encaminhar uma solução. Numa consideração inicial, a dúvida tem seu fundamento, conduzindo a uma conclusão muito evidente. Mas a segunda pergunta foi ainda mais incisiva, talvez mais complicada: É conveniente que se respeite a hierarquia na família, na qual Deus pôs o marido como cabeça, conforme ensina: se as esposas quiserem saber algo, perguntem-no aos maridos (cfr. I Cor., 14-35). Portanto, o anjo deveria ter feito a anunciação a São José, pois este, como esposo da Virgem, é quem deveria tê-lo comunicado a Ela. Além do mais, o próprio São José foi instruído por um anjo (cfr. Mt 1, 20-21).
Ao terminar a leitura das perguntas de Santo Tomás, pensei: agora é que as coisas ficaram complicadas! Se eu não tivesse a certeza de estar lendo o próprio Doutor Angélico, julgaria ter apanhado por engano o livro de algum malvado “teólogo” encarregado de matar a fé, servindo-se para isso das próprias evidências e da Sagrada Escritura.
O desígnio de Deus
Coroação da Virgem
Por brevidade, não falarei das outras duas perguntas que Santo Tomás formulou, pois bastam estas para mostrar a complexidade do problema.
E aqui vem a parte mais interessante. Santo Tomás usava um sistema para ensinar seus alunos, que consistia em apresentar lado-a-lado dúvidas que, na realidade, consistem em objeções à tese defendida. O primeiro tipo de argumento constitui, muito bem formulado, uma dedução; e o segundo tipo, fatos ou evidências, algo que não pode ser nem deformado nem interpretado de outra maneira. Quando consideramos de um lado um fato inegável, e de outro algo que deduzimos, mas que se opõe ao fato, nossa dedução é errada sob algum ângulo, quer gostemos ou não.
Nesse caso concreto, as duas deduções que ele apresenta — mostrando que a anunciação deveria ter sido feita por Deus, ou diretamente a São José — se opõem a um fato concreto: a Sagrada Escritura diz com todas as letras que um anjo fez a anunciação a Maria. Ponto final.
Logo, por mais bela que possa parecer a argumentação em contrário, ela contém algo errado.
Confesso que tive muita curiosidade para adivinhar como seria a refutação do grande teólogo aos seus próprios argumentos, pois ambos me pareciam sólidos como uma rocha. Mas na refutação, antes de mais nada, ele mostra como foi conveniente o plano de Deus, e como Ele atuou com sabedoria infinita ao enviar um anjo a Maria. Isto por três motivos:
1. Porque há um desígnio divino geral, segundo o qual as coisas do Céu devem chegar aos homens por meio dos anjos. Eles foram os primeiros a ser instruídos sobre a Encarnação, e encarregados de instruir tanto São Zacarias, de quem viria o precursor (São João Batista), quanto Nossa Senhora sobre o plano de Deus.
2. Porque, assim como o início da decadência humana se deu por meio de um anjo, quando Eva caiu — pois um anjo decaído, um demônio, falou-lhe e a tentou —, assim também convinha que fosse através de um puro espírito, falando com uma mulher, que se desse o início da restauração humana, anunciando a vinda do Salvador.
3. Porque Maria Santíssima era virgem, e a virgindade é uma virtude angélica — associada aos anjos por fazer da vida terrena uma vida de espírito, celestial.
As regras e as exceções
Uma vez esclarecida genericamente a beleza do plano divino, passa Santo Tomás a refutar os argumentos contidos nas duas questões acima, e que parecem à primeira vista tão sólidos. Vou apresentar essa refutação resumidamente.
Sim, Nossa Senhora era Rainha dos anjos, por motivo da dignidade a que tinha sido chamada, e enquanto tal superior a eles. Mas no estado de vida mortal, enquanto ainda vivendo nesta Terra antes de ir ao Céu e ver a Deus, Ela ainda tinha que ser instruída, pois não conhecia todos os planos de Deus. Por isso mesmo, não era contrariar a ordem hierárquica o fato de Ela ser instruída por um anjo.
Quanto ao segundo argumento, resume-se assim: Santo Agostinho nos ensina, num sermão sobre a Anunciação, que Nossa Senhora esteve isenta de algumas leis gerais que se aplicam a todas as mulheres (basta pensar que foi preservada do pecado original). Ela concebeu Jesus Cristo por obra do Espírito Santo, sem intervenção do seu marido, São José. E foi desejo do próprio Deus que Ela tivesse conhecimento da conceição antes de seu marido, a quem somente depois esse fato foi revelado, em sonhos, por um anjo.
Pareceu-me interessante tratar desse tema, tão bem apresentado por Santo Tomás, pela beleza de sua complexidade. Deus é autor das regras gerais, mas Ele mesmo deseja que haja exceções. Por um lado, isso ressalta a beleza da regra; e por outro, ressalta uma majestade enquanto Deus, para dispensar da regra. Ele quer o matrimônio para a propagação da espécie; mas ao mesmo tempo, para o nascimento terreno de seu próprio Filho, desejou que isso ocorresse mediante uma virgem, por ação direta do Espírito Santo. Ele quer que na família o pai venha primeiro, depois a mãe, e em seguida os filhos; mas determinou que na Sagrada Família –– a família por excelência! –– o Filho fosse superior, por ser Deus; após vinha a Mãe, imaculada, e finalmente o pai. Mas nessa disposição não há lugar para revoltas, não há nada que tenha qualquer laivo de luta de classes. É a exceção da regra, que confirma o poder de Deus, mas sempre mantendo a beleza do plano inicial.
Nessas questões e explanações de Santo Tomás, fica claro que, como regra ou como exceção, Nossa Senhora é sempre um verdadeiro modelo para nós, digno de nossa admiração e de nosso amor.
(Artigo concedido pela revista Catolicismo)