Sete questões capitais sobre Deus – e seu impacto no mundo e em nossa vida
José Ruy Gandra
O DEUS HOMEM
Detalhe da escultura Pietá, de Michelangelo. Os atributos humanos não condizem com a natureza indecifrável de Deus
1. DEUS ESTÁ MORTO
Definitivamente, não. Embora muita gente ainda questione a relevância das religiões em sua vida, um novo debate se impôs globalmente: Deus é benéfico para o mundo? Para os novos ateus, como Dawkins, Hitchens, Harris e Dennett, ele não passa de um delírio – e, caso de fato existisse, deveria ser executado em praça pública. Para esse grupo, feroz e irredutível em seus argumentos, a religião é um fenômeno retrógrado e perverso, que conduz à ignorância, a disputas amargas e a guerras. Karen Armstrong se opõe a essa visão. Num extrato de seu livro, publicado na revista Foreign Policy, ela parte para o ataque. “Os novos ateus não estão errados apenas quanto à religião e à política. Eles se enganam quanto à própria natureza humana”, diz. “Enquanto os cães, até onde se sabe, não especulam sobre sua condição canina nem se preocupam com a própria efemeridade, nós, seres humanos, mergulhamos facilmente no desespero caso não encontremos um sentido para nossa vida.” Resumindo: Deus vive. O que não quer dizer que, figuradamente, seu óbito não possa ser atestado. “Mesmo para os que creem, Deus morre”, diz o rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica do Brasil (CJB). “Mas não sua essência. O que falece é nossa percepção sempre inacabada de sua natureza.” Para o xeque Jihad Hassan Hammadeh, um dos líderes da comunidade islâmica brasileira, o que morre são as ideias teológicas formuladas pelos homens. “Mas não ‘Ele’. A crença em Deus é um acessório original de fábrica do ser humano, e não um item opcional. Todos nascem crendo”, diz Jihad. Para as grandes tradições religiosas e a enorme maioria da humanidade, Deus não parece estar indo a parte alguma – uma razão a mais para que encontremos um modo equilibrado e profundo de conviver com sua presença.
2. AS RELIGIÕES ESTÃO RENASCENDO
Ao que tudo indica, sim. “Vivemos um período de grandes inquietudes e de uma tremenda ebulição existencial e espiritual nas mais diversas tradições religiosas”, diz o rabino Bonder. “A questão é se essas religiões terão grandeza e flexibilidade para não aplicar velhas respostas a essas novas demandas.” Para o bispo dom Dimas Barbosa, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), esse fenômeno é particularmente intenso nos países do Leste Europeu. “Após décadas de um ateísmo totalitário, seus habitantes estão com a fé à flor da pele.” O lama Padma Samten, diretor do Instituto Caminho do Meio – Centro de Estudos Budistas Bodisatva, de orientação tibetana e sediado em Viamão, no Rio Grande do Sul, endossa essa tese. “As religiões estão renascendo, pois os conhecimentos que brotam da ciência, da economia e da política tornaram-se filosoficamente muito limitados.” Segundo Samten, as religiões, em especial o budismo, hoje oferecem uma compreensão bem mais profunda e refinada da realidade. “Ouso dizer que, hoje, os cientistas tornaram-se religiosos, e os budistas céticos”, diz ele. Em The case for God, Karen Armstrong salienta outro fenômeno interessante. Cada vez mais pessoas acreditam nos ensinamentos e práticas de mais de uma religião. “É inevitável que, hoje, se busque inspiração em mais de uma tradição religiosa”, afirma. “É parte da globalização.”
3. POR QUE UNS CREEM ,E OUTROS NÃO
Eis uma questão delicada. De acordo com as principais tradições monoteístas, todas as pessoas nascem crendo. “Até o ateu, mesmo que inconscientemente, busca o criador”, diz o xeque Jihad. “De um modo ou outro, todos correm atrás do prejuízo causado pela ausência de Deus.” O rabino Bonder concorda com a tese com um quase aforismo. “Há os que creem e há os que creem que não creem”, diz. Para o teólogo e pastor Ed René Kivitz, da paulistana Igreja Batista de Água Branca, “o paradoxo da fé é exatamente ela ter como objeto algo que transcende a racionalidade”. A crença, para o lama Samten, é um traço imanente aos seres humanos. “Mesmo que as pessoas não se deem conta, os elementos espirituais estão presentes e atuantes nelas.” Por essa razão, ele argumenta, a prática é tão essencial. Karen segue a mesma trilha. “A religião é uma alquimia ética”, diz ela. “É um exercício de comportamento sistemático que muda as pessoas e seus valores, pois lhes abre as portas para a intimidade com o sagrado.” De acordo com dom Dimas, “as pessoas encontram os sinais da fé em si próprias e tomam suas decisões nesse campo com o coração”.
GUERRAS SANTAS
Cartaz do aiatolá Khomeini em manifestação no Irã. A secularização repentina acabou levando os clérigos radicais xiitas ao poder
4. DEUS E POLÍTICA NÃO COMBINAM
Depende. Segundo Karen Armstrong, no Ocidente o secularismo foi bem-sucedido e essencial para a consolidação da política e da economia modernas. Mas foi alcançado gradativamente, ao longo de três séculos. Isso permitiu que a nova ideia de governo se cristalizasse em praticamente todos os níveis da sociedade. Em outras partes do mundo, no entanto, a secularização ocorreu com tamanha rapidez – e, muitas vezes, de modo tão agressivo – que gerou ressentimentos em populações ainda fortemente ligadas à religião. Como reação, esses povos passaram a considerar as instituições ocidentais, entre elas a democracia, modelos impróprios para sua vida e seu país. Por ter liderado essa universalização do secularismo com a fúria de um rolo compressor, o Ocidente acabou enfrentando sérios reveses. Quando, apoiado pelos Estados Unidos, os xás do Irã torturaram e exilaram os religiosos que se opunham ao regime, alguns clérigos, como o aiatolá Khomeini, concluíram que a participação dos líderes islâmicos no governo deveria ser rapidamente fortalecida. Os resultados dessa mudança de postura dos muçulmanos xiitas, que por séculos consideraram a distância do poder um princípio sagrado, são bem conhecidos.
5. DEUS SEMEIA A VIOLÊNCIA
Ele não. Os homens, sim. “Deus é justo e prega a paz. As pessoas é que interpretam a religião segundo seus interesses e a desvirtuam”, diz o xeque Jihad. “Isso acontece porque Deus deu ao ser humano o livre-arbítrio, que tanto pode servir ao bem quanto ao mal.” O católico dom Dimas concorda: “O livre-arbítrio é a glória e, ao mesmo tempo, a miséria dos seres humanos”, diz. “Essa liberdade é minha dignidade; mas, ao mesmo tempo, se mal usada, pode ser meu flagelo.” Karen aborda o tema por uma ótica ligeiramente distinta. Não é Deus ou as religiões que semeiam as atrocidades, mas sim a violência inerente à natureza humana. “Como espécie, sobrevivemos matando outros animais e também nossos semelhantes”, diz. Essa violência está tão impregnada em nossa vida que é relatada, em termos assustadores, em praticamente todos os livros sagrados. Felizmente, segundo Karen, ela é contrabalançada por outros textos que promovem a compaixão e sua regra de ouro: “Trate os outros como você gostaria que tratassem a você mesmo”. Apesar de inúmeras falhas ao longo dos séculos, essa regra se manteve no centro de todas as principais tradições religiosas – e é um sólido ponto de partida para o ecumenismo.
REAÇÃO
Um casal muçulmano em trajes típicos, na Índia. O combate ao uso do véu acabou transformando-o num dos principais símbolos da integridade islâmica
6. DEUS OPRIME AS MULHERES
Infelizmente, sim. “É verdade que nenhuma das principais religiões do mundo tem sido boa para elas”, afirma Karen. “Mesmo que, em seus primórdios, algumas tenham se mostrado generosas com as mulheres, como o cristianismo ou o islamismo, em poucas gerações os homens as transformaram num patriarcado.” De acordo com o rabino Bonder, “todo Deus manipulado pelas ideias humanas é nocivo para as minorias, em especial as mulheres; os homens ostentam uma espécie de inveja uterina”. Uma das maiores conquistas da modernidade ocidental foi a emancipação feminina. Mas os fundamentalistas, em sua luta contra o espírito contemporâneo, tendem a enfatizar a igualdade de gêneros como uma ameaça a repelir. Parece ter surtido efeito. Onde quer que governantes modernizadores tenham tentado banir o uso do véu em países islâmicos, as próprias mulheres passaram a adotá-lo em maior número, com um fervor redobrado. Em 1935, os soldados do xá Mohammad Reza Pahlavi dispararam contra centenas de manifestantes desarmados que protestavam contra o uso obrigatório de trajes ocidentais. Desatinos desse tipo acabaram transformando o véu, cujo uso até então não era disseminado, num símbolo da integridade islâmica. Muitos muçulmanos hoje clamam que, enquanto a moda ocidental é sinônimo de riqueza e privilégio, as vestimentas islâmicas enfatizam o igualitarismo contido nos capítulos do Alcorão, conhecidos como suratas.
7. CIÊNCIA E FÉ SÃO EXCLUDENTES
Não. Elas apenas operam em dois planos distintos, que, até o século XIX, eram vistos como complementares. “Fé e razão são duas asas pelas quais o entendimento alça voos em busca da verdade”, diz dom Dimas, citando uma passagem da encíclica Fides et ratio (Fé e razão) , de João Paulo II. “A fé sem a ciência é ingênua”, diz. “E a ciência sem a fé, muito fria e desumana.” Enquanto a ciência avança pelas planícies da razão, a fé busca iluminar os desfiladeiros do mito. Karen deixa essa fronteira clara numa das mais belas passagens de seu livro, quando diz que a ciência pode diagnosticar o câncer – e até mesmo curá-lo –, mas não pode ajudar na consternação causada pelo diagnóstico nem ensinar a morrer bem. Para Karen, desvendar a origem do Universo não é papel da religião, e sim da ciência. A missão da religião seria nos ajudar a lidar com os aspectos da vida para os quais raramente estamos preparados, como a morte. “Como espécie, caímos facilmente em desespero se não conseguimos enxergar algum tipo de significado em nossa existência. A religião enfrenta questões que não podem ser resolvidas de uma vez por todas”, escreve Karen. É a essa magnífica e penosa tarefa que chamamos fé. O resto é razão.
CINCO ESTRADAS NA BUSCA DO SAGRADO
| Xeque Jihad Hassan, líder da comunidade islâmica “Toda pessoa nasce com fé. A crença em Deus é um acessório original de fábrica do ser humano, e não um item opcional. Todos nascem crendo” |
| Dom Dimas Barbosa, secretário-geral da CNBB “Vivemos um período de grandes inquietudes e de uma tremenda ebulição existencial e espiritual nas mais diversas tradições religiosas” |
| Rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica do Brasil “Há os que creem e há os que creem que não creem. Viver é sempre tomar partido, e crer ou não é um ato além da racionalidade” |
| Lama Padma Samten, do Centro de Estudos Budistas Bodisatva “Os conhecimentos da ciência tornaram-se limitados. Ouso dizer que, hoje, os cientistas tornaram-se religiosos, e os budistas céticos” |
| Ed René Kivitz, pastor da Igreja Batista de Água Branca “O que gera a violência é o fator Deus, e não ele próprio. Diante do dilema de matar ou morrer, Jesus escolheu deixar-se matar por seus oponentes” |