De modo análogo a como se nega a historicidade dos milagres, às vezes afirma-se que o título de “filho de Deus” só designa, nos evangelhos, uma aproximação especial de Jesus com Deus. Geralmente, argumenta-se designando que este título tem diversos usos nos textos da época: aplica-se a personagens que se distinguem por serem justos, ao povo de Israel, aos anjos, a realeza ou a pessoas com alguma faculdade especial. Mas quando consideramos os relatos evangélicos, novamente aparecem diferenças só explicáveis se se reconhece a natureza divina de Cristo, proclamada à luz do mistério Pascal.
Assim, no evangelho de São Marcos se demonstra que a personalidade se Jesus é sobre-humana. Certamente, em certas ocasiões, Jesus é proclamado filho de Deus por pessoas que talvez só o façam segundo o sentido normal da época, sem conhecer a fundo suas implicações
Porém, também, a voz do Pai no Batismo e na Transfiguração testemunha que Jesus é Filho de Deus; e à luz desta declaração pode-se apreciar em muitas outras passagens o caráter real e único da filiação divina de Cristo. Por exemplo, o próprio Jesus apresenta-se como o “filho amado” na parábola dos vinhateiros homicidas, radicalmente diferente de todos os enviados anteriores; também manifesta uma relação pessoal única de filiação e confiança com o Pai ao chamar-lhe - e este é o único evangelho que o mostra – Abba[12] , Papai.
Neste contexto, é interessante assinalar como a fé do evangelista na divindade de Jesus fica marcada pelo versículo citado, Filho de Deus[13], e a confissão do centurião, ao final do texto: verdadeiramente este homem era Filho de Deus![14].
Em São Mateus, a definição divina de Jesus se apresenta com mais profusão que em São Marcos. O título vem manifestado por endemoninhados, pelo centurião, pelos que passam sob a Cruz no Calvário, pelos sacerdotes, por Pedro e os discípulos, especialmente depois de um milagre. Ainda mais claramente que em São Marcos, vê-se que nem todos os que o chamam filho de Deus o reconhecem como tal, e sem dúvida esta atitude serve ao evangelista como contraponto daqueles que o fizeram.
Entretanto, o terceiro evangelho ressalta a relação entre Jesus e o Pai, destacando-a em um ambiente de oração, de intimidade e confiança, de entrega e submissão, que termina nas últimas palavras pronunciadas na Cruz: Pai, em tuas mãos entrego meu espírito[15].
Ao mesmo tempo é fácil captar como sua vida e sua missão são continuamente guiadas pelo Espírito Santo, já desde a Anunciação onde se proclama sua filiação divina. Junto a estas características particularmente destacadas em São Lucas, voltamos a encontrar outros testemunhos comuns com os demais evangelistas: também os demônios chamam “Filho de Deus” a Jesus nas tentações e nas curas dos endemoninhados em Cafarnaun e Gerasa.
Em São João apresenta-se a filiação divina de Cristo em seu sentido mais profundo e transcendente: Ele é o Verbo, que está no seio de Deus e se faz carne; é pré-existente, já que é anterior a Abraão; foi enviado pelo Pai, desceu do céu... São características que destacam a realidade divina de Jesus
A confissão da divindade por parte de Tomé pode considerar-se o cume do evangelho, que foi escrito para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que crendo, tenhais a vida em seu nome[16].
Em São João é patente, talvez mais que em nenhum outro evangelista, como a afirmação da divindade real de Jesus pertence ao próprio núcleo da pregação apostólica. Uma afirmação, além de tudo, que aprofunda suas raízes na consciência que Cristo tinha desta divindade, em sua passagem pela terra.
Neste sentido, é de especial interesse recordar - e é um elemento comum a todos os evangelistas - como Jesus diferencia sua relação com o Pai da que tem com os demais homens: meu Pai é quem me glorifica, aquele que vós dizeis ser o vosso Deus[17]; subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus[18]; a expressão “Pai nosso” nos lábios de Jesus só aparece em uma ocasião, ao ensinar aos discípulos o modo que devem rezar. Cristo nunca põe no mesmo nível sua especial filiação com a dos discípulos: uma amostra da consciência que Ele mesmo tinha de sua divindade.
A pregação da primitiva comunidade cristã apresenta as formas de anuncio, de catequeses, de exortação ou de argumentação em favor da fé, que vêm recolhidas na narração evangélica. Isto influi mais em suas características literárias que no conteúdo do que aconteceu.
É útil descobrir que as necessidades da pregação levaram a selecionar algumas passagens em relação a muitas outras[19], e que moveram os evangelistas a apresentar a vida de Cristo em um modo mais teológico que biográfico, mais sistemático que cronológico. Porém não há motivo para pensar que este interesse e essas necessidades levem a falsificar as recordações, a criá-los ou a inventá-los.
Mais ainda, as expressões e acontecimentos desconcertantes são uma prova a mais da credibilidade dos evangelhos - por que o batismo, se Cristo não tinha pecado?, por que afirmar a aparente ignorância de Jesus a respeito da Parusia, ou que não pôde fazer milagres, ou que estava cansado? -, como o são também a forma semítica das palavras, ou o uso de expressões arcaicas ou não assumidas pela teologia posterior – como “filho do Homem”.
Os evangelhos estão repletos de episódios cheios de candura e naturalidade; cada um deles é uma mostra de veracidade, e do desejo de contar a vida de Jesus no seio da tradição da Igreja. Quem escuta e recebe essa Palavra pode chegar a ser discípulo[20].
Na mensagem cristã se entrelaçam a fé e história, teologia e razão, e os testemunhos apostólicos manifestam a preocupação de apoiar sua fé e sua mensagem sobre os fatos, contados com sinceridade.
Nessas páginas, o próprio Cristo se dá a conhecer aos homens de todos os tempos, na realidade de sua história, de seu anuncio. Lendo-as, não aderimos a um ideal moral; meditar o evangelho não é refletir sobre uma doutrina. É meditar a história de Cristo desde o seu nascimento num presépio até à sua morte e sua ressurreição[21], porquequando amamos uma pessoa, desejamos conhecer até os menores detalhes da sua existência, do seu caráter, para assim nos identificarmos com ela[22]
B. Estrada
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[1] Cfr. Joseph Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré, cap. 1 e 2.
[2] Caminho n. 584.
[3] 1 Cor 1, 23s.
[4] Cfr. Flávio Josefo, Antiquitates Judaiae, 18, 3, 3.
[5] Conc. Vaticano II, Const. dogm. Dei Verbum, n. 18.
[6] Cfr. Joseph Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré (I), Introdução.
[7] 1 Cor 15, 14.
[8] Cfr. Mt 13, 18; Mc 6, 50.
[9] Catecismo da Igreja Católica, n. 515.
[10] Amigos de Deus, n. 216.
[11] Cfr. Lc 11, 20.
[12] Mc 14, 36.
[13] Mc 1,1.
[14] Mc 15, 39.
[15] Lc 23, 46.
[16] Jo 20, 31.
[17] Jo 8, 54.
[18] Jo 20, 17.
[19] Cfr. Jo 21, 25.
[20] Cfr. Joseph Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré (I), cap. 4.
[21] É Cristo que passa, n. 107.
[22] É Cristo que passa, n. 107.