sexta-feira, 1 de junho de 2012

Escrever-se

 


Um escritor francês de quem muito gosto – Gilbert Cesbron – dizia que o único critério de verificação para alguém saber se é realmente ou não um escritor é perguntar-se se pode viver sem escrever. Fiz a mim mesma esta pergunta algumas, várias, muitas vezes.  E a resposta foi sempre a mesma.  Não, não consigo viver sem a página em branco – agora tela em branco –  que me convoca e a pena na mão que treme, hoje substituída pelos dedos no teclado... que também tremem.

Por que o tremor?  Por causa do temor... íntimo, profundo e quase santo da responsabilidade que é criar um texto, formar palavras, agrupar letras, encadear sílabas que outros lerão.  E quando o leitor ou leitora é apenas o eu que treme, não é menor o temor, nem menos avultada a responsabilidade. Pois escrever é fixar, é guardar, é inscrever no tempo e no espaço da folha ou da tela algo que, mesmo desconhecido para a maioria, passará a fazer parte da história da humanidade como síntese única e experiência irrepetível.  E porque sabiam disso os grandes mestres espirituais da história sempre disseram a seus discípulos que escrevessem. E porque os discípulos obedeceram temos hoje a monumental obra de Teresa de Ávila, acessível a nossos olhos, corações e mentes.  Algo análogo aconteceu com muitos outros e outras que, mesmo não obedecendo a outro em quem reconhecessem autoridade para tal, escolheram escrever-se e narrar-se a páginas de um anônimo caderno impulsionados por razões interiores profundas e verdadeiras.

Pois, ao lado da escolha por escrever para dar sentido à vida, está presente igualmente a pulsão pela escrita de si para salvar-se da morte.  Quem escreve um diário busca, além de entender-se e ao mundo que o rodeia, colocar-se protegido do caos e do tempo que passa, inexorável.  E assim, como afirma Maurice Blanchot, salvar o vivido no escrito e salvar a vida mediante a escrita.

Em todo caso, exercício ascético, literário ou filosófico, o fato é que escrever-se é uma prática recorrente e viva por parte da humanidade.  Testemunhas disso são os preciosos diários e livros confessionais e de memórias que brotaram da experiência e da pena de tantos gênios e santos (como Santo Inácio de Loyola, Etty Hillesum.  E também Pedro Nava, Walter Benjamin e inúmeros outros e outras).

Michel Foucault, em seu memorável texto A escrita de si, reflete sobre  a escrita dos movimentos interiores como exercício ascético.  Escrever os próprios desejos, pensamentos, impulsos, é aprender a conhecê-los e, consequentemente, poder dominá-los e exercer controle sobre eles.  Assim também escrever tentações, maus desejos, pensamentos destrutivos, arranca o desejo do anonimato em que se encontra, escondido ao fundo da liberdade humana,  e o expõe no código da escrita.

Refletindo sobre a vida de Santo Antão, famoso padre do deserto, campeão de ascese e santidade, Santo Atanásio – citado por Foucault no texto acima – exalta as virtudes da escrita como disciplina excelente que descobre os maus pensamentos, tentações e pecados ao próprio indivíduo e exerce papel semelhante ao da comunidade que corrige fraternamente o homem religioso que busca a perfeição. “Aquilo que os outros são para o asceta numa comunidade, sê-lo-á o caderno de notas para o solitário”.

No fundo, toda essa reflexão vai demonstrando que por mais objetiva que seja a escrita e por maior neutralidade que pretenda o escritor, escreve-se sempre para si mesmo e a partir de si mesmo.  Não escreve quem não passou pelo crivo da experiência a narrativa que constrói, os personagens que cria, as situações que inventa.  E tampouco as definições, argumentações e teses que rigorosamente encadeia no texto acadêmico, dirigindo-se à razão alheia, mas não deixando de tocar nos elementos vitais sem os quais essa razão não merece o nome de humana. Em um tempo em que a narrativa – como experiência, como exercício, como prática lúdica ou docente – parece estar em crise ou mesmo desaparecendo, a escrita de si adquire o cunho de resistência, resiliência, de quem não desiste de permanecer na contramão do tempo cronológico.

Autor: Maria Clara Bingemer

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