— Então, cara, não vai entregar nomes e endereços de seus camaradas no Partido Comunista? Vladimir Herzog havia sido torturado horas no DOI-CODI de São Paulo. Ao ser intimado a prestar depoimento, a 24 de outubro de 1975, não vivia clandestino, morava em endereço fixo, trabalhava como jornalista, era casado e pai de dois filhos. Ao ser convocado à polícia, imaginou que ficaria ali tempo suficiente para prestar esclarecimentos. Retornaria para dormir em casa. Agora, tinha os pulsos marcados por fios de corrente elétrica e lesões provocadas pelos choques na uretra, no ânus e sob as unhas. — Já disse que não estou ligado a nenhum partido – insistiu Vlado. — Tenho formação de esquerda, sou contra a ditadura, mas não exerço militância. — Você não tem escolha, cara! Ou abre o bico ou te suicidamos. Se quer bancar o heroi, vai se dar mal. — Quem vai se dar mal são vocês. Morrer sei que vou mesmo, um dia, como todo mundo. Mas vocês, torturadores, assassinos, morrerão execrados. Nenhuma ditadura é eterna. Quando o Brasil retornar à democracia, terão de prestar contas do assassinato de Rubens Paiva, do martírio de Frei Tito, e de tantos desaparecimentos e eliminações extrajudiciais. — Você acredita mesmo nisso? Deixa de ser trouxa, cara. Antes que a democracia volte, os generais farão uma lei nos eximindo de qualquer responsabilidade. Uma anistia geral e irrestrita. Porque, no Brasil, oficiais superiores são inimputáveis. Então, ninguém vai poder apurar nada. Se combatemos a subversão do nosso jeito, é para defender o Estado. A lei somos nós. Nós decidimos o que é certo ou errado — Engano seu. O futuro não esquece. Os crimes dos nazistas foram investigados e penalizados ao findar a Segunda Guerra Mundial. Enquanto houver um carrasco nazista refugiado mundo afora, ele será procurado e, capturado, sancionado. Tortura e extermínio extrajudicial são crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis. — Imprescritíveis na sua cabeça, cara. Aqui no Brasil a coisa é diferente. Os militares são intocáveis. Quem se atreve a desafiar os generais? Eles estão acima da lei. E nós, que sujamos as mãos sob ordens deles, temos costas largas. — Posso sair morto daqui, suicidado por vocês, a exemplo de tantos que passaram pelos porões da ditadura, como Virgílio Gomes da Silva. Mas uma coisa é certa: apesar da venda nos olhos, a Justica não é cega. Militares não sentam nas poltronas togadas do Supremo Tribunal Federal. Um dia esta corte haverá de reconhecer que responsáveis por crimes da ditadura não podem ser anistiados. Só merece anistia quem, primeiro, foi apontado como criminoso e devidamente castigado. — Você, cara, como todo esquerdista, é um sonhador. Acha que, se um dia, eu fosse passar vergonha de fazer o que faço estaria aqui sujando as mãos de sangue? Fique tranquilo, a gente vai fazer uma lei pra passar a borracha em todo esse período de exceção. Vocês também não serão punidos. — Como não seremos? Nós já estamos sendo severamente punidos por lutar pela volta da democracia. Punidos com prisão, torturas, morte, desaparecimento, exílio, censura. Mas tenho confiança de que, cedo ou tarde, se fará justiça no Brasil. — Cara, voce é um idealista! Acha que neste país tem juiz com culhão para enfrentar os militares? Se um dia uma dessas instituições babacas que ficam por aí defendendo os direitos humanos, como a OAB e a CNBB, exigirem apuração, vão quebrar a cara. No Brasil a lei da força sempre falou mais alto que a força da lei. Não haverá juiz com coragem de nos levar à barra dos tribunais. Aqui, pra quem está por cima da carne seca, tudo termina em pizza. Dá-se um jeitinho. No Brasil, o poder sempre soube fazer omelete sem quebrar os ovos. Vladimir Herzog foi suicidado no dia 25 de outubro de 1975. Tinha 38 anos. Segundo versão do Exército, enforcou-se se com o próprio cinto. Regras do DOI-CODI determinavam que nenhum prisioneiro podia ser recolhido à cela de posse de cinto, gravata e cadarço de sapatos. No dia 30 de abril de 2010, o STF decretou a segunda morte de Vladimir Herzog ao absolver, por 7 votos a 2, os crimes hediondos cometidos pela ditadura militar brasileira ao longo de 21 anos. Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros. http://freibetto.org.br – |
domingo, 4 de julho de 2010
Frei Betto
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