sábado, 26 de junho de 2010

Ginga futebol arte





O célebre Mario Filho, autor do livro O negro e o futebol brasileiro, observa a reação dos jornais ingleses referindo-se à seleção brasileira em excursão na Europa em 1956, às vésperas da conquista da copa do mundo de 1958: "o futebol brasileiro tinha tudo de um circo: o comedor de fogo, o engolidor de faca, os acrobatas, os trapezistas, até os palhaços.

Só não tinha essa coisa elementar que era um time." Para muitos, o futebol brasileiro é incompreensível. Isso porque a fonte de sua inspiração nasce da civilização africana que sofre de forte recalcamento pelos sistemas neocoloniais europocêntricos. Essa recriação do futebol começa com a participação do negro. Faz com que a linguagem do futebol seja envolvida por novos valores procedentes de culturas milenares.


O jogo que era uma elaboração das formas técnicas industriais de produção, a divisão de funções do trabalho a serem cumpridas da melhor maneira visando unicamente o gol, que significa objetivo, produtividade, tem agora uma nova pedra angular, isto é a noção de “odara” que, em língua yoruba, significa bom e bonito simultaneamente.

Nessa bacia semântica de formas e movimentos, o técnico não se separa do estético: é uma e mesma coisa. Então, a ocupação do tempo e do espaço do jogo sofrerão mudanças radicais. A mesma indagação sobre a capoeira para os de fora da roda: se é dança, se é luta, se é religião, se é jogo, acontece com o que viemos a chamar de “futebol arte”. Assim como a capoeira, a base do jogo é a ginga.

A ginga é o movimento que incorpora a sincopa, o vazio que constrói a esquiva que torna o jogador invisível para o adversário. Esse movimento se faz ao sabor do ritmo do balanço, que os afro-americanos chamam de “suingue”. O nome ginga, creio eu, deriva como homenagem a Rainha Ginga Ngola Bandi Kiluanji. Ela que enfrentou os colonialistas escravistas de Portugal e é considerada a rainha invisível por suas táticas de deslocamentos conseguindo manter o reino do Ndongo (Angola) independente, é lembrada nos autos de coroação dos reis de Congo nas congadas do Brasil.

Outra referência importante se desdobra da noção do espaço sagrado. Nas tradições cristãs, o espaço celeste é o lugar do sagrado. Toda uma estética se constitui dessa noção, desde as narrativas celestiais as pinturas das igrejas e sua arquitetura se projetando para o alto. Assim como a dança "clássica", o ballet com seus saltos para o alto, o futebol inglês não foge desse valor, bola para cima e a cabeçada faz da cabeça o lugar onde o espírito se separa ou controla a matéria ou pecado de onde deve sair o gol.

Muito diferente é a noção do espaço sagrado nas culturas afro-brasileiras. Aqui é o interior da terra que guarda e contém o mistério da criação, de onde se celebram a ancestralidade. Então toda uma estética está voltada para baixo, em termos de rituais, complexas danças com gestos simbólicos, onde todo o corpo e os pés em contato com o solo sacralizado realizam a comunicação entre esse mundo e o além.

Assim como a capoeira original se faz ao rés do chão, o futebol arte evolui rente ao gramado.

Por fim, tendo na origem o livro sagrado, a comunicação exigindo a concepção do corpo ascético, do corpo inerte, educado para obter conhecimento apenas através da leitura ou de imagens, exacerbando a relação olho-cérebro, característica das culturas européias, faz com que se desdobre na formação de jogadores de futebol o que chamamos de cintura dura. Por outro lado, nas culturas afro-brasileiras o acesso ao saber faz um apelo a todos os sentidos, promovendo a sinergia entre eles e ao mesmo tempo exigindo uma comunicação direta intergrupal onde se dá e se realiza o desejo de estar junto, em interação grupal se fortalecendo podendo se divertir e manifestar a alegria. A música percussiva, a dramatização que envolve a estética do sagrado faz do corpo em movimento um caminho de adoração de entidades ancestrais.

Daqui se desdobra também essa característica lúdica do nosso futebol arte e, através dela, somos o País com mais conquistas da copa do mundo.
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Esta reflexão é dedicada ao zagueiro e técnico Jayme de Almeida (1) (1920 – 1973). Jayme jogou no Atlético Mineiro (MG: 1936 a 1938) e no Flamengo (RJ: 1938 a 1949), tendo atuado na Copa América e na Seleção Brasileira. Em 1949, Jayme seria o primeiro jogador profissional a ganhar o prêmio Belfort Duarte que era concedido ao atleta que permanecesse dez anos sem receber qualquer punição, disputasse no mínimo 200 partidas nacionais e internacionais e também comprovasse “bons antecedentes”. O prêmio conferia ao vencedor o status de ser congratulado o autor de relevantes serviços prestados ao futebol.

(1) Um irmão carnal de Lélia de Almeida Gonzalez, homenageada em Memorial Lélia Gonzalez responsável por esta coluna em Amai-vos.

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Autor: Marco Aurélio Luz é Elebogi e Oju Oba, integrante da Troça Carnavalesca Pai Buruko. Doutor em Comunicação UFRJ, autor do livro Agadá: dinâmica da civilização afro-brasileira, editora UFBA/Pallas. 1995, dentre outros. - maolluz@terra.com.br
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Algumas obras de Marco Aurélio Luz
Agada: Dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. Centro Editorial e Didático da UFBA, ISBN 8523201106 (85-232-0110-6)
Cultura Negra Em Tempos Pós-modernos. EDUFBA, ISBN 8523202781 (85-232-0278-1)
Do Tronco ao Opa Exim: Memória e Dinâmica da Tradição Afro-Brasileira. Pallas, ISBN 8534701660 (85-347-0166-0)
Identidade Negra e Educação. Salvador, Ianamá, 1990, ISBN 10: 8585151099
Foto: “Jornal dos Sportes, in http://www.museudosesportes.com.br/noticia.php?id=5632 com retoque fotográfico por Memorial Lélia Gonzalez

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