segunda-feira, 3 de maio de 2010

A GARÇA E A ÁGUA (I)

Frei Ludovico Garmus

Era uma vez uma garça, toda branca, que veio visitar Petrópolis. Veio de longe e pousou no rio Piabanha. Eu estava num ponto do ônibus, quando a vi, e fiquei surpreso. Ela estava sozinha, de pé, no leito do rio. Estava quieta e olhava atentamente a água que escorria aos seus pés. Parecia muito pensativa e preocupada. Imaginei logo a razão desta tristeza e preocupação: Por mais que ela olhasse, não encontrava nenhum peixinho sequer. Fiquei com pena dela. Aproximei-me de mansinho e puxei conversa com ela:

- Oi garcinha! O que você está fazendo aqui? Nunca te vi aqui em Petrópolis! Qual é o seu nome?
Ela parecia triste e preocupada. Mesmo assim, olhou para mim e começou a falar comigo:

- Eu me chamo Bianca – disse a pequena garça. Mamãe deu-me este nome porque, como minhas irmãs, sou toda branquinha.
- Donde você veio aqui para Petrópolis? – perguntei.
- Eu vim bem de longe. Lá do Pantanal do Mato Grosso.
- Mas você deixou o Pantanal, onde há tanta água e tanto peixe, e logo para vir aqui a Petrópolis? Dizem que o Pantanal é um paraíso, um patrimônio da humanidade! Não entendo.
- De fato, não é fácil explicar. O Pantanal ainda tem muita água e muitas aves, é verdade. Mas a situação está ficando cada vez mais difícil.
- Como assim, Bianca?
- E a garcinha, com um ar de tristeza, começou a explicar: Aqueles homens – disse ela – que se chamam fazendeiros, derrubaram as matas, acabaram com os cerrados para fazer grandes plantações e criar gado. Dizem que é o tal do agronegócio. Eles ganham muito dinheiro com isso. Mas para nós garças, para outras aves e passarinhos, para os peixes, a situação piorou muito. Antes a gente voava e podia pousar em alguma árvore. Agora, o que se vê são quilômetros e quilômetros sem árvore nenhuma. A gente voa e não encontra uma árvore sequer para pousar e descansar. Antes havia muitos riachos, muita água limpa, com peixinhos para a gente pescar e comer. Mas agora, muitos riachos simplesmente desapareceram. A água que ainda sobrou está ficando muito poluída pelos agrotóxicos. Os fazendeiros usam até pequenos aviões para jogar veneno sobre as enormes plantações de soja e de cana de açúcar. O veneno mata os bichinhos, que eles chamam de pragas. Mas envenena também a terra e a água. Muitos passarinhos morrem e também outros insetos que não prejudicam a tal da soja. Quando vêm as chuvas, levam muita areia com água poluída para os rios e para o Pantanal. Com isso, os rios e o Pantanal estão ficando assoreados. O povo que mora por ali, já está fazendo até cisternas para captar a água de chuva, para beber. A água envenenada faz mal para as pessoas. Imagine para nós e para os peixes. Eu, minhas irmãs e meus irmãos ficamos até doentes. Então, nossa mamãe garça recomendou: Procurem outros lugares do Brasil. Deve ter muita água não poluída ainda, com muito peixe em todo o lugar.
- Tua mãe tem razão, Bianca – disse eu. Os entendidos falam que no Brasil temos cerca de 15% de toda a água doce do mundo.
- Pode ser, porque eu já vi muita água na minha vida. – Depois continuou: Atendendo a sugestão da mamãe, voamos, então, para a Amazônia. Mais precisamente, para o Acre. Diziam que ao menos lá havia reservas extrativas, criadas pelo saudoso Chico Mendes. As reservas mostram que é possível homens ganharem a vida sem derrubar a mata e acabar com as aves e os animais. A mata conserva a água e abastece os rios. Pensávamos que seria um ótimo lugar para nós garças podermos viver tranqüilas.
- Boa escolha, garcinha! – comentei eu. Eu também já estive na Amazônia, na região de Manaus. É muita água! A gente nem consegue ver a outra margem do rio. Vi até botos, com seus mergulhos solenes, subindo e descendo o rio. Há muitos lagos, igarapés, água limpa e peixe em abundância.
- Era exatamente isso que nossos pais nos diziam – continuou a garça. Mas quando chegamos ao Acre, tivemos uma grande surpresa. Também ali grandes extensões de mata virgem já tinham sido derrubadas. Os fazendeiros já haviam chegado ali, para criar gado e plantar soja.

Provavelmente, por causa disso, em 2005, quando ali chegamos, estava acontecendo uma terrível seca na Amazônia. Os igarapés secaram, os rios baixaram tanto que não era mais possível navegar. Os fazendeiros incendiaram as pastagens secas para renovar o pasto, como eles ainda costumam fazer. Mas o fogo se propagou para a mata virgem e atingiu até as reservas florestais. Foi um inferno. Havia tanta fumaça que nós garças até perdíamos o rumo quando voávamos. Os lagos ficaram cheios de peixes intragáveis. Era uma podridão.

- De fato, disse eu, foi muito triste, garcinha. Nós, os civilizados, vimos tudo isso na televisão, lemos nos jornais. Foi muito comentado.

- Vocês viram isso na TV, sim. Mas nós sentimos o drama em nossa pele, ou melhor em nossas penas. Não só nós. Todo o povo ribeirinho, começou a passar sede e fome. A gente até que podia se virar, porque mudamos de dieta.
- Como assim, garcinha? vocês mudaram de dieta?
- Já que não havia mais peixe, nós começamos a seguir o gado. Comíamos os insetos que o gado espantava. Além do mais, a gente fazia um serviço de limpeza na pele do gado. Comíamos os carrapatos e bernes, que tanto incomodavam o gado. As vacas e os bois gostavam de nós, porque cada vez que a gente bicava na pele deles para catar um berne, fazíamos cócegas neles... Mas comer só carrapato e berne enjoa, sabe?

Quando ouvi este triste relato da Bianca, nossa pequena garça, fiquei pensando comigo mesmo: Que coisa terrível nós fazemos. Derrubamos o mato, incendiamos as florestas, provocamos as secas e envenenamos as águas. A gente faz tudo isso muitas vezes sem pensar nas conseqüências, apenas por lucro. Esquecemos todos os outros seres vivos, que precisam de água e de alimentos para sobreviver, como nós. No final, toda a natureza fica prejudicada: terra, homens, plantas, peixes, pássaros e animais. Isso acontece lá no Pantanal, na Amazônia, mas também em Petrópolis, Paty e em outras cidades. Desmatamos, prejudicamos as águas, poluímos a água com o nosso lixo, com os detergentes e outros venenos. A pequena garça percebeu que agora era eu que estava preocupado, e continuou falando.

- Como não dava para viver no Pantanal nem na Amazônia, então resolvemos voar até o Rio de Janeiro. Nossa vovó garça dizia que lá era tudo muito bonito. O Rio era a Cidade Maravilhosa. A Baía da Guanabara, a Lagoa Rodrigo de Freitas, o Corcovado, o Pão de Açúcar e as montanhas com suas matas. Mas chegando até a Lagoa, encontramos as águas cobertas de milhares de peixes mortos. Diziam que era por causa da poluição. Eu, que me criei no Pantanal , sempre gostei de água doce. Mas até a água doce que o povo toma não tem graça nenhuma. Está cheia de produtos químicos que os homens dizem que serve para tratar a água do Rio Guandu, toda ela muito contaminada.
- E daí, garcinha, o que você resolveu fazer? – Perguntei.
- Minhas irmãs decidiram ir até o Rio Paraíba, no encontro com o Paraibuna. Mas, como elas me contaram, o rio Paraíba do Sul ficou todo poluído porque havia rebentado uma barragem em Minas. Com isso, os restos dos minérios se espalharam pelas águas dos rios Paraibuna e Paraíba, matando peixes, patos, mariscos e até garças que comiam os peixes contaminados. Foi um desastre ecológico, como diziam. As águas viraram pura lama.
- E olha, Bianca, isso não aconteceu pela primeira vez – comentei eu. Em 2003, houve um vazamento de 1,20 bilhões de litros de água tóxica, contaminada pelo cloro e soda cáustica, proveniente de uma fábrica de papel. O desastre ambiental deixou mais de 500 mil pessoas sem água potável, acabou com os peixes dom rio, matou até jacarés, bezerros e bois que beberam desta água. Dizimou cães, gatos, patos, galinhas e outros pequenos animais que comeram camarões contaminados. Dois mil pescadores ficaram sem trabalho, durante noventa dias.
- É, nós ouvimos falar disso tudo. Percebemos que há muitas pessoas que só pensam no lucro e não se preocupam com a água, os peixes, as aves e as garças. Diante disso, minhas irmãs resolveram ir lá para o Nordeste.
- Mas por que logo para o Nordeste, tão seco? – perguntei.
- Foram para o Nordeste porque ouviram falar que lá morava um bispo franciscano, chamado Frei Luis Cápio. Um santo homem, um amigo da água, dos peixes, das garças e de tudo que vive da água. Ele chegou a fazer um jejum de dez dias, para defender as águas do Rio São Francisco. “Dou minha vida pela vida do Rio” – dizia ele. Tomava apenas a água do São Francisco. Muita gente pobre o apoiou, mas provocou a raiva de político e dos homens do agronegócio. Eles queriam transpor parte das águas, já diminuídas pelo desmatamento, para as suas terras.
- De fato, garcinha. Nós aqui do Petrópolis, e de muitas outras partes do Brasil, apoiamos o gesto corajoso deste bispo franciscano. Ele decidiu arriscar sua própria vida para salvar o Rio São Francisco, proteger a vida dos pobres que ali moram, salvar a vida dos peixes, das aves e de todas as garças.
- Nós garças ficamos muito comovidas com o jejum deste bispo. Durante dez dias ele deixou de comer, para não deixar que nós, as garças, as aves, os animais e o povo pobre passássemos fome. Agora temos certeza que nem tudo está perdido. Ainda há gente que pensa em nós e nos defende. Por isso, podemos continuar esperando por tempos melhores. Além do mais, ouvimos também que o povo, com a ajuda da Igreja e das ONGs, estava construindo cisternas para guardar a água da chuva. Minhas irmãs garças me diziam que era preferível ter pouca água, mas limpa, do que toda esta poluição das grandes cidades e até do Pantanal.
- Mas você não foi com elas. Por que? - perguntei.
- Eu resolvi vir até aqui, a Petrópolis, porque me lembrei do que minha vovó, nascida e criada em Petrópolis, contava para a gente quando éramos crianças. Ela dizia que em Petrópolis tudo era muito bonito. A Cidade Imperial, no meio das montanhas, cobertas de mata. Casas muito bonitas, construídas junto do mato, mas sem derrubá-lo. E muitos riachos, afluentes do Piabanha, com águas tão limpas, que as crianças podiam tomar banho e os meninos podiam pescar alguns peixinhos. Havia muito peixe também para nós, as garças. Todos ali gostavam das garças e não as incomodavam. Resolvi vir para cá para conferir se era de fato assim.
- E o que está achando de nossa cidade e de nossos rios? Eu vi você parada, aí no rio, olhando e imaginei o que estaria pensando: Não tem mais peixinhos, não é...?
- É, de fato, é uma decepção. Eu não posso nem acreditar! Um rio com tanta água, sem um peixinho sequer. O que essa gente está fazendo com a água? Eu estou até passando fome. Estou vendo se pego algum resto de carne podre, porque na hora do aperto, vale tudo.
- E o pior – comentei eu – é que o rio está poluído. Tome cuidado, garcinha. Você parada aí no rio, pode fazer mal. Pode pegar alguma doença. Infelizmente, muita gente ainda joga sacolas de lixo, plásticos, pneus, pettys, caixotes de madeira e outros entulhos mais. Como se o rio fosse uma lixeira. No passado, muitas tecelagens lançavam suas tintas e anilinas todas no rio. A água ficava colorida, azul, vermelha, amarela ou preta. Além disso, nossa Cidade Imperial está apenas começando a tratar o seu esgoto. Você devia sentir como é horrível o mau cheiro, quando não chove.
- Infelizmente, pensando bem – disse-me a garcinha – não dá mesmo para ficar e viver por aqui. Vou me embora, para junto de minhas irmãs e meus irmãos, lá para o Nordeste.
- Que pena! Você podia ficar por aqui – eu disse para ela. As crianças, todo o mundo iria gostar. Olha, a gente está fazendo até caminhadas ecológicas, promovidas pelas paróquias franciscanas do Sagrado Coração de Jesus e de Paty do Alferes. Estamos procurando conscientizar as pessoas para cuidarem mais das árvores, da água e do lixo. Prometo que vai chegar o dia em que vocês garças poderão vir, em bandos, comer os peixinhos criados em nosso rio Piabanha e enfeitar a nossa Cidade.
- Bem – disse a garcinha Bianca – sou até capaz de voltar um dia, se vocês prometerem cuidar mais da água. Mas agora eu preciso voar! Tchau! Vou-me embora para o sertão!
- Tchau, garcinha! Volte sempre!

E vocês, que ouviram a história da garça branca e da água, prometem que vão defender a água?

Historieta de caráter didático, para falar do tema “Água, como vai?”. Foi apresentada na VII Caminhada Ecológica Franciscana, promovida pelas Paróquias do Sagrado Coração de Jesus (Petrópolis) e de Nossa Senhora da Conceição (Paty do Alferes), no dia 06 de maio de 2006.

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