domingo, 24 de janeiro de 2010

Artigo




Zilda Arns: doutora em humanidade

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Onde mais poderia a morte ter colhido esta mulher, qual fruta


madura e túrgida de sumo e sabor? Onde mais poderia ela ter feito


sua passagem para a vida em plenitude na qual sempre acreditou e


pela qual deu o melhor de suas energias e de sua própria vida?


Que outro poderia ter sido seu destino? Que morte pousaria melhor


selo nesta vida que foi condição para que tantos e tantas tivessem


direito à vida ou pelo menos a uma vida mais humana?


Onde mais poderia estar essa doutora em medicina e pedagogia?


Atendendo nos consultórios desinfetados e imaculadamente limpos,


onde os pacientes abastados pagam polpudos cheques pelas consultas?


Nas salas de aula das universidades que enchem os peitos de


medalhas, as biografias de prestígios e honrarias?


Onde mais poderia ser encontrado o corpo chegado ao termo de seus


dias desta viúva e mãe de cinco filhos, avó de vários netos? Em


casa, no sossego do lar, gozando legitima e alegremente da


companhia dos seus, rodeada do carinho dos familiares e amigos? Em


ambiente higiênico e confortável, recebendo os cuidados que já


poderia esperar em sua idade de 75 anos na qual tantos se recolhem


e já não mais exercem as atividades anteriormente desempenhadas?


Não quando se trata da Doutora Zilda Arns, catarinense de


Forquilhinha que cinco anos após enviuvar e deixar o cargo público


que exercia no governo da cidade onde vivia, no estado do Paraná,


recebeu o telefonema do irmão, o então cardeal de São Paulo, Dom


Paulo Evaristo Arns como um chamado do próprio Deus: fazer um


projeto de combate à mortalidade infantil. Tratava-se de


basicamente ensinar às mães das camadas mais pobres da população a


salvar a vida de seus filhos que morriam como moscas, dizimados


pela diarréia e a desidratação com a confecção de algo tão simples


como o soro caseiro.


Como ela mesma declarou em entrevista dada no ano passado à


revista Época, naquele momento sentiu que Deus a preparara durante


a vida inteira para aquela missão. Naquela noite, em vez de


dormir, pensou e redigiu o projeto integral do que foi depois a


Pastoral da Criança, que tem salvado alguns milhões de vidas,


baixando os níveis da mortalidade infantil no Brasil em proporção


surpreendente. Por isso foi exportado a vários outros países onde


a injustiça e a opressão da fome e das condições inumanas de vida


ceifavam gerações de crianças e a esperança de povos inteiros.


Hoje é toda uma rede internacional de mães e agentes sociais


salvando vidas através do soro caseiro, da multimistura,


combatendo desnutrição, diarréia, desidratação e infecções


primárias que não permitiam que tantas pequenas e jovens vidas se


desenvolvessem e crescessem. Com sua imponente estatura loura, seu


passo nobre, sua palavra segura, a Doutora Zilda comandava esse


exército do bem e da paz, visitando os projetos e as comunidades,


dando palestras para conscientizar governo e Igreja local,


assessorando estados e nações.


Três vezes indicada ao Premio Nobel da Paz, por três vezes não o


recebeu. O reconhecimento de sua vida de doação e entrega


generosa lhe viria por outro inesperado caminho. No miserável e


castigado Haiti, onde parece que todas as catástrofes e penúrias


se conflagram, acumulando mais e mais dores sobre um povo que


busca a vida por pequenas frestas e brechas, a Doutora Zilda se


preparava para dar uma conferencia para os religiosos do Caribe.


O terremoto que se abateu sobre a sofrida terra haitiana e vitimou


a tantos, inclusive ao cardeal de Porto Príncipe, a soterrou sob


escombros.


Onde mais poderia estar esta apostola da paz e da justiça senão


entre os seus? Onde mais terminaria sua jornada incansável pela


vida senão ali onde a vida era mais agredida e se encontrava mais


combalida e frágil? O dom da vida da Doutora Zilda foi consumado


de forma total e sem retorno aos mais pobres e sofridos de toda a


terra neste momento: as crianças haitianas.


Esperemos que pelo menos em seu país – o Brasil - receba o


reconhecimento que merece pelo muito que por ele tem feito.


Esperemos que o presidente faça uma pausa em sua ocupada agenda de


campanha presidencial para decretar luto oficial, fazer minuto de


silencio, pronunciar-se. Esperemos que a mídia abra espaço e


incline a cabeça. Atenção, senhoras e senhores: a Doutora Zilda


pede passagem.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe o seu comentário!

Seja bem vindo!
Pascom Porto Feliz