Maria Clara Lucchetti Bingemer
Onde mais poderia a morte ter colhido esta mulher, qual fruta madura e túrgida de sumo e sabor? Onde mais poderia ela ter feito sua passagem para a vida em plenitude na qual sempre acreditou e pela qual deu o melhor de suas energias e de sua própria vida? Que outro poderia ter sido seu destino? Que morte pousaria melhor selo nesta vida que foi condição para que tantos e tantas tivessem direito à vida ou pelo menos a uma vida mais humana? Onde mais poderia estar essa doutora em medicina e pedagogia? Atendendo nos consultórios desinfetados e imaculadamente limpos, onde os pacientes abastados pagam polpudos cheques pelas consultas? Nas salas de aula das universidades que enchem os peitos de medalhas, as biografias de prestígios e honrarias? Onde mais poderia ser encontrado o corpo chegado ao termo de seus dias desta viúva e mãe de cinco filhos, avó de vários netos? Em casa, no sossego do lar, gozando legitima e alegremente da companhia dos seus, rodeada do carinho dos familiares e amigos? Em ambiente higiênico e confortável, recebendo os cuidados que já poderia esperar em sua idade de 75 anos na qual tantos se recolhem e já não mais exercem as atividades anteriormente desempenhadas? Não quando se trata da Doutora Zilda Arns, catarinense de Forquilhinha que cinco anos após enviuvar e deixar o cargo público que exercia no governo da cidade onde vivia, no estado do Paraná, recebeu o telefonema do irmão, o então cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns como um chamado do próprio Deus: fazer um projeto de combate à mortalidade infantil. Tratava-se de basicamente ensinar às mães das camadas mais pobres da população a salvar a vida de seus filhos que morriam como moscas, dizimados pela diarréia e a desidratação com a confecção de algo tão simples como o soro caseiro. Como ela mesma declarou em entrevista dada no ano passado à revista Época, naquele momento sentiu que Deus a preparara durante a vida inteira para aquela missão. Naquela noite, em vez de dormir, pensou e redigiu o projeto integral do que foi depois a Pastoral da Criança, que tem salvado alguns milhões de vidas, baixando os níveis da mortalidade infantil no Brasil em proporção surpreendente. Por isso foi exportado a vários outros países onde a injustiça e a opressão da fome e das condições inumanas de vida ceifavam gerações de crianças e a esperança de povos inteiros. Hoje é toda uma rede internacional de mães e agentes sociais salvando vidas através do soro caseiro, da multimistura, combatendo desnutrição, diarréia, desidratação e infecções primárias que não permitiam que tantas pequenas e jovens vidas se desenvolvessem e crescessem. Com sua imponente estatura loura, seu passo nobre, sua palavra segura, a Doutora Zilda comandava esse exército do bem e da paz, visitando os projetos e as comunidades, dando palestras para conscientizar governo e Igreja local, assessorando estados e nações. Três vezes indicada ao Premio Nobel da Paz, por três vezes não o recebeu. O reconhecimento de sua vida de doação e entrega generosa lhe viria por outro inesperado caminho. No miserável e castigado Haiti, onde parece que todas as catástrofes e penúrias se conflagram, acumulando mais e mais dores sobre um povo que busca a vida por pequenas frestas e brechas, a Doutora Zilda se preparava para dar uma conferencia para os religiosos do Caribe. O terremoto que se abateu sobre a sofrida terra haitiana e vitimou a tantos, inclusive ao cardeal de Porto Príncipe, a soterrou sob escombros. Onde mais poderia estar esta apostola da paz e da justiça senão entre os seus? Onde mais terminaria sua jornada incansável pela vida senão ali onde a vida era mais agredida e se encontrava mais combalida e frágil? O dom da vida da Doutora Zilda foi consumado de forma total e sem retorno aos mais pobres e sofridos de toda a terra neste momento: as crianças haitianas. Esperemos que pelo menos em seu país – o Brasil - receba o reconhecimento que merece pelo muito que por ele tem feito. Esperemos que o presidente faça uma pausa em sua ocupada agenda de campanha presidencial para decretar luto oficial, fazer minuto de silencio, pronunciar-se. Esperemos que a mídia abra espaço e incline a cabeça. Atenção, senhoras e senhores: a Doutora Zilda pede passagem. | ||
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domingo, 24 de janeiro de 2010
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