quinta-feira, 12 de abril de 2012

Da cruz à luz

 


           Pouco antes da Semana Santa sempre reservo um momento para rezar de forma mais íntima e pessoal a experiência da via sacra. Fujo da rotina de trabalho e vou à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no bairro Lagoinha, meu berço espiritual. Ali fui batizado, crismado, fiz a Primeira Eucaristia, participei do Grupo de Jovens, enfim, tenho minhas raízes cristãs, extensão da minha casa. Voltar lá é sempre um exercício de rezar a memória afetiva.
         Chego à igreja que, nesta hora, está vazia. Logo à entrada, pego numa mesa um folheto com as notícias da paróquia. Na capa, uma bela reflexão sobre o Magnificat:

“A misericórdia de Deus chega a todos que o temem, de geração em geração. Ele realiza proezas com o poder do seu braço, dispersa os soberbos, derruba do trono os poderosos, exalta os humildes, sacia de bens os famintos, socorre os pobres...” (Lucas 1, 50-54).

Sento-me no primeiro banco, olhos fechados, coração aberto...
          No silêncio da igreja vazia, quase posso ver e ouvir o meu irmão Alexandre tocando o violão ao lado do Waldir, o grupo todo cantando as músicas da missa jovem, presidida pelo Pe. Glauco nos fins de tarde de sábado.
          Embalado nas lembranças, começo a percorrer os corredores. Os quadros da via sacra parecem saltar da parede, como imagens em 3D. Vejo Jesus passar arrastando nos ombros o peso da cruz, o corpo lanhado pelos chicotes dos carrascos, a fronte rasgada pelos espinhos.
Com ele, passam diante de mim os pobres, os perseguidos, os famintos, os injustiçados do mundo, da História, uma procissão de miseráveis carregando nos ombros todas as dores que o egoísmo humano foi capaz de inventar.
         No silêncio do meu coração, ressoa uma pergunta angustiada: Quando os humildes serão exaltados, os famintos saciados, os pobres socorridos? Quando os soberbos serão dispersos, os poderosos derrubados dos seus tronos?
         As manchetes de jornais e revistas, os noticiários de TV e Rádio negam o Magnificat. A mídia parece afirmar todos os dias: a verdade, a justiça, a paz e o bem são derrotados a cada momento pelo poder do dinheiro e pelo dinheiro no poder. O Mal aparece triunfante, indestrutível.
        Em meio ao meu desalento, das brumas do tempo vêm palavras que já ouvi tantas vezes: “é a vontade de Deus... gemendo e chorando nesse vale de lágrimas... a recompensa no paraíso...”.
        Palavras que não me confortam, ideias com as quais não me conformo.
        Não consigo acreditar num Deus cuja vontade é o sofrimento. Não sou ingênuo, a dor existe, eu sei, mas ela há que ter outro sentido...
        Contemplo novamente o Cristo carregando a sua cruz. Cruz que Ele não escolheu. Não era, tampouco, uma predestinação. Ele não a queria. Ao perceber sua aproximação, “sua alma entrou numa tristeza mortal”. Pediu ao Pai que a afastasse. Depois, percebendo que, para acolher a vida plena, precisava vencer a morte, assumiu a cruz, símbolo de derrota, humilhação suprema, dando a ela outro significado.
        A cruz, na verdade, é o resultado do confronto entre a proposta de Deus e a resposta do mundo. A Cruz repete o conflito original, no Jardim do Éden: à proposta do Amor criativo da Trindade, o Homem responde com um NÃO que brota do seu Egoísmo. A liberdade é o risco de Deus ao criar-nos à sua imagem e semelhança.
       No Gênesis, Deus, transborda de amor e CRIA! A Criação é gesto natural de bondade amorosa. Antes do pecado original, não podemos nos esquecer, existiu a bondade original. Não somos frutos do pecado, mas do amor. O pecado original é a ruptura humana com o gesto amoroso e criativo de Deus.
       Mas a Trindade Divina, na sua compaixão e misericórdia, insiste. Na encarnação, Jesus, cumprindo a vontade do Pai e inspirado pelo Espírito Santo, por suas palavras e gestos, re-cria uma nova ordem que resgata pessoas e estruturas. A ótica é a mesma desde a Criação: o Amor. Mas, Ele veio para os seus e os seus o rejeitaram... E a resposta, nada original, dos homens, é a Cruz.
       No Jardim do Éden o Homem SE expulsou de Deus. Em Jesus, Deus abraça a cruz, motivo de humilhação e escândalo e torna-a instrumento de reconciliação e redenção. Ao assumir a cruz, Jesus “ama até o fim”. Com seu gesto Ele coloca o NÃO radical dos Homens em comunhão com o SIM absoluto de Deus.
       Jesus subverte a cruz. De escândalo, ela passa a ser sinal/sacramento do Amor maior, torna-se “lugar por excelência do encontro com Deus”.
         Mas a cruz nada tem a ver com a lógica masoquista, de autopiedade, do discurso do vale de lágrimas onde devemos viver gemendo e chorando. Não nascemos para a dor, o sofrimento. Nossa vocação é a felicidade. Para isso fomos criados. "Eu vim para que a minha alegria esteja em vocês e a alegria de vocês seja completa", diz Jesus.
         Não temos que buscar a cruz e o sofrimento. Não é preciso buscar. A vida, na sua liberdade, encarrega-se, de muitas formas, de apresentá-los a nós. Como Jesus, somos chamados a acolher a dor, enfrentá-la, superá-la, “recriando o paraíso agora, para merecer o que vem depois”.
         Portanto, cuidado com a teologia do sofrimento que nos transforma em cordeiros a caminho do abatedouro. Cuidado com aqueles que pregam o conformismo diante da dor, da opressão, da exploração, da injustiça. Cuidado com quem justifica a miséria prometendo recompensas no Juízo Final. Se há um lugar e um tempo para construir felicidade, paz, justiça e igualdade é AQUI e AGORA. Lá, no Paraíso, tudo JÁ É. Lá, o banquete já está pronto, a mesa já está posta.
         Repito, não nascemos para a dor e sim para a felicidade. Não confundir com o hedonismo que prega a busca do prazer a qualquer preço. Há preços altos demais...
         Hoje, para mim, contemplar a via sacra é re-afirmar minha vocação para a vida, a felicidade, a alegria. É re-novar meu compromisso com a construção da  paz e da justiça. É re-conhecer a dignidade de todos os seres que habitam este planeta.
         Chego, enfim, à 15ª estação. Um suspiro de alívio a perceber que minha via sacra, assim como a de Jesus, sempre termina em ressurreição. A via da cruz é passagem para o caminho da Luz. A última palavra é dita pela Vida, e pela vida em abundância, em plenitude. O que parece ser fim é, na verdade, sempre um re-começo.
         Jesus, o Homem que veio nos trazer a sua alegria e fazer a nossa completa, ensina a abraçar as cruzes que a Vida, em sua liberdade, pode colocar à nossa frente. Diante da experiência do sofrimento (tantos e tão variados), Ele pode nos dizer: Estou com você. Já passei por isso. Pode contar comigo. Tenha confiança; Eu venci a dor, Eu venci o mundo porque amei o mundo...
         Depois da cruz de Jesus que se faz memória viva todos os dias na Mesa Eucarística, todo sofrimento humano ganha outro sentido. Nós nos configuramos com o Cristo, nos identificamos com Ele que, por sua vez, em sua cruz, identificou-se e resgatou todos os oprimidos da História.
        Deus experimentou a nossa miséria, Ele passou pela dor e, nela, nos amou além de todos os limites. Por isso, via sacra, para mim, é via lux, caminho de luz.
        Ao sair da igreja de Nossa Senhora da Conceição, na Lagoinha, paro um instante à porta e contemplo o templo que por tantos anos foi a extensão da minha casa. Os bancos vazios, os corredores silenciosos...
       Lá na frente, perto do altar, minha saudade adivinha o grupo de jovens cantando, ao som do violão do Alexandre:

“...nos amou com a dor e no amor transformou toda dor...”.

Autor: Eduardo Machado

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