Frei João Mannes, OFM
É próprio da natureza humana crer em algo absoluto e irredutível a um determinado objeto que está à nossa mão. Nós mesmos atestamos o quanto somos movidos por um desejo de ulterioridade e quão difícil é exprimir em conceitos o “objeto” desse desejo. Do esforço intelectual para dizer o inominável surgiram nomes como “Deus”, “Alá”, “Santo”, “Sagrado”, “Divino” e “Totalmente Outro”. Tem-se, enfim, a clara percepção de que os nomes referem-se a uma Realidade que transcende infinitamente as possibilidades do conhecimento humano.
Na perspectiva judaico-cristã, o mistério que envolve e transcende a nós e a todas as coisas é Deus. E todas as pessoas que já vivenciaram uma profunda experiência de Deus falam Dele quase que balbuciando, ou seja, com a percepção “racional” de que estão diante de um mistério. O mistério de Deus não é totalmente decifrável pela inteligência humana, mas também não é totalmente inacessível. Se fosse totalmente inacessível não poderíamos nem sequer nos referir a Ele como mistério. Por outro lado, se fosse totalmente manifesto, não haveria busca interminável de Deus ou experiência religiosa (Santo Agostinho). De modo que Deus desceu de sua inacessibilidade e se nos revelou por excelência na pessoa de Jesus Cristo (Jo 1,18) a fim de fazer-se procurar com mais afinco pela humanidade “em todo tempo e lugar”. O Deus revelado por Jesus Cristo encarnado é essencialmente um mistério transbordante de amor e, portanto, somente apreensível na experiência (ascese) da liberdade e do amor.
Todavia, o que se pretende enfatizar na presente reflexão não é a revelação de Deus em Jesus Cristo, mas, antes, sua manifestação contínua na obra da criação do universo. Cada ser não existe por si mesmo, mas por graça do Criador que, gratuita e livremente, lhe comunica o ser. Em outras palavras, cada criatura recebe o seu ser de Deus que, movido unicamente pela Sua vontade, a cria e mantém na existência pela íntima presença do Seu sopro (espírito) criativo (Sb 1,7; Is 34,16). A criação emerge continuamente como projeção e auto-comunicação gratuita de Deus. Para M. C. Schuback, Deus está de modo inteiro, indiviso e integral em cada criatura, sem fragmentar-se, ou seja, “resguardando o seu ser-uno” (Para ler os medievais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 56-62). E, de acordo com o místico alemão Mestre Eckhart, Deus está inteiramente em todos os lugares como “a alma que está inteira, indivisa e integralmente no pé, no olho e em cada membro do corpo”. Cada criatura, porém, o acolhe e o manifesta dentro das suas possibilidades (mineral, vegetal, animal ou homem).
Assim, em todos os seres do universo transparece o Sagrado porque não se fundamentam em si mesmos, mas no espírito de “doação integral de Deus”. Nas palavras de L. Boff, “o sagrado é a profundidade de cada pessoa humana. É a misteriosidade de cada ser da Criação” (Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 67). O íntimo mais íntimo de cada ser ama esconder-se e fazer-se presente, provocando assombro, encanto, fascínio, tremor e admiração na alma humana. Enquanto criada à imagem de Deus, a alma humana tem a capacidade de estar para além do espaço e do tempo e de amar e conhecer a Deus. No processo de amor e conhecimento de Deus o ser humano desprende-se cada vez mais de si mesmo e assemelha-se à absoluta incondicionalidade do modo de ser de Deus. E à medida que ele se diviniza, apreende as coisas e pessoas “para além delas”, ou seja, respectivamente como vestígios e imagens de Deus.
Francisco de Assis é modelo arquetípico de ser humano que intuiu a presença do Sagrado em todas as criaturas. Conforme relata-se no Espelho da Perfeição, o Pobre de Assis, “totalmente absorto no amor de Deus, vislumbrava perfeitamente a bondade de Deus não só na sua alma, já ornada com toda a perfeição das virtudes, mas também em qualquer criatura” (2EP 113,1). Diante do espetáculo das criaturas, Francisco cala, arregalando os olhos, porque vê cada criatura não simplesmente como uma coisa ou um objeto de uso, mas milagrosamente emergindo do nada e das mãos do Criador. Na visão de Francisco, cada criatura não é um mero objeto à sua mão utilitarista, mas lugar privilegiado de revelação e retraimento do mistério de Deus. Conseqüentemente, Francisco não reverencia as criaturas em si mesmas (isso seria idolatria), mas o Divino que nelas transparece.
Todavia, constata-se que no Ocidente desencadeou-se um processo de emancipação da razão em relação ao Sagrado. Esse processo de dessacralização chegou ao seu ponto mais elevado na modernidade. E uma vez abolido o Sagrado do mundo, tanto a natureza quanto o ser humano entram no domínio do objetivável e, portanto, do cientificamente explicável. De fato, a concepção de homem e de mundo que impera na modernidade tende a excluir totalmente a referência a Deus como mistério tremendo e a fabricar deuses à imagem dos interesses e conveniências do próprio ser humano. Isto quer dizer que o ser humano não deixou de acreditar em algo absoluto. Ocorre que no lugar do Absoluto (Deus) ele coloca-se a si mesmo, a razão, a ciência, o dinheiro, a carreira, o sexo, a produção e o consumo, conforme atesta Max Scheler em O eterno no homem: “todo o ser humano crê ou em Deus ou em um ídolo”.
A idéia que o ser humano faz de si mesmo e do mundo na atualidade é excessivamente racionalista, mecanicista e materialista. As coisas e pessoas são meros objetos de uso para uma determinada finalidade (racionalidade instrumental). Requer-se do cientista o máximo de objetividade, neutralidade e impessoalidade diante dos fenômenos a serem investigados. Essa postura objetiva do cientista nos laboratórios torna-se problemática à medida que ela se estende também às relações do humano com os seus semelhantes, com a natureza e com Deus. Sob esse aspecto a concepção moderna de ciência contribuiu muito para o aprofundamento da separação entre os seres humanos, entre o humano e a natureza, a mente e o corpo, a razão e a emoção, a objetividade e a subjetividade e, enfim, entre a ciência e a espiritualidade. Evidencia-se, assim, que o processo de emancipação do Sagrado está na base da fragmentação da realidade e do relacionamento predatório do ser humano com a natureza. No livro O ponto de mutação (São Paulo: Cultrix, 1980, p. 39) Fritjof Capra afirma: “Hoje está ficando cada vez mais evidente que a excessiva ênfase no método científico e no pensamento racional, analítico, levou a atitudes profundamente antiecológicas”. O afastamento da natureza e da espiritualidade levou o homem ao desenvolvimento do aspecto racional-intelectual em detrimento do espiritual e, complementa Capra, “(...) essa evolução unilateral atingiu agora um estágio alarmante, uma situação tão paradoxal que beira a insanidade”.
O processo de secularização do humano e de todo o universo atinge também as instituições religiosas. Por mais paradoxal que pareça, no âmbito da vida religiosa corre-se o sério risco de se perder totalmente o fascínio pelo Sagrado (Deus) por conta da globalização da mentalidade secular que anteriormente descrevemos. Ao invés de se procurar o Deus de Jesus Cristo pode-se procurar um ídolo que não corresponde ao desejo infinito do ser humano. Enfim, são muitos os perigos que ameaçam o ideal da vida religiosa. Ou será que ainda hoje “treme-se”, à maneira de São Francisco, diante do tremendo e fascinante mistério da Eucaristia? Por que S. Francisco foi tão enfático nas admoestações acerca dos perigos do ter, do poder e do saber?
É inegável que o atual estado de fragmentação do mundo está provocando um grande desconforto psíquico e despertando o desejo de retorno a uma visão de totalidade do universo. É interessante observar que a necessidade de uma visão não-fragmentada da realidade surge no próprio meio científico, antes comprometido com a abordagem racionalista e fragmentadora do mundo. A Física moderna, por meio do estudo do átomo, chegou a importante conclusão de que todos os corpos estão interligados por uma energia. E nesse contexto da re-descoberta do universo pelos cientistas, é interessantíssima a declaração do físico Max Planck (1858-1947), criador da Teoria Quântica: “Nunca poderá haver uma real oposição entre a religião e a ciência. Toda pessoa séria e que reflita irá perceber que o elemento religioso em sua natureza deve ser reconhecido e cultivado”.
Enfim, é importante hoje “re-aprender a ver o mundo” (Merleau Ponty) e revê-lo a partir da dimensão mais originária do ser humano e dos seres do universo. Para tanto, é necessário, segundo Max Scheler, a destruição de todos os ídolos, ou seja, libertar-se da desregrada vontade de ter, de poder, de saber e de prazer que impedem de ver a realidade na sua totalidade e de acolhê-la como manifestação de uma mesma Realidade que unifica e impregna tudo. Somente com os olhos do espírito purificados é possível ver que todos os seres do universo estão à mercê do sopro (espírito) criativo de Deus que “enche a terra e reúne tudo” (Sb 1,7; Is 34,16).
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