sábado, 29 de agosto de 2009

primeira parte

Entrevista com Leonardo Boff:
A ecologia exterior e a ecologia interior.
Francisco, uma síntese feliz



IHU On-Line - Como São Francisco pode ser entendido nos dias atuais? Qual é a sua maior contribuição para a humanidade em crise, depredada pelo domínio da razão e do individualismo?
Leonardo Boff - São Francisco tem muitas facetas. Ele redescobriu a humanidade pobre de Jesus encarnada nos mais pobres dos pobres que eram os hansenianos (leprosos) com quem foi viver. Inventou o presépio. Fundou uma ordem religiosa itinerante, pois os frades iam pelos caminhos evangelizando na língua vernácula do local e não em latim. Foi o primeiro a ganhar licença de celebrar a missa fora, no campo e nas praças, desde que houvesse a pedra d’ara (um pedaço de pedra contendo uma relíquia de santo). Mas, fundamentalmente, ficou memorável por seu amor cósmico. Depois de séculos em que o Cristianismo se encerrara nos conventos e se concentrara nas palavras sagradas, Francisco descobre Deus na natureza. Ela não é mais paganizada, cheia de divindades, nas fontes, nas montanhas e nas árvores. Ela é o grande sacramento de Deus. Até Francisco, o cristianismo vivia a dimensão vertical: todos são filhos e filhas de Deus. Com ele, começou a se viver a dimensão horizontal: se todos são filhos e filhas, então todos são irmãos e irmãs. Não apenas os humanos, mas cada ser da criação. Com enternecimento chamava com o doce nome de irmão ou irmã a estrela mais distante, o passarinho na rama, o sol, a lua e a lesma do caminho. Esta atitude é, hoje, considerada da maior relevância, pois encerra uma dimensão perdida em nossa cultura que se coloca por em cima da natureza, dominando-a e esquece que todos estamos juntos, ao pé um do outro e formamos a grande comunidade de vida. São Francisco fundou um novo humanismo, uma síntese feliz entre a ecologia exterior (cuidado para com todos os seres) e a ecologia interior (ternura, amor, compaixão e veneração).

IHU On-Line - A Oração da Paz é atribuída a São Francisco, mesmo tendo sido provado que ela não é de autoria do santo. O que ela diz à nossa sociedade atual?
Leonardo Boff - A Oração da Paz é urdida com pedaços de frases dos escritos de São Francisco e totalmente dentro de seu espírito. Ela encerra o segredo da paz possível. Há que ser realista, pois a condição humana, pessoal e social, é feita pelo simbólico e pelo diabólico. Em nosso mundo, há luz e há trevas, há amor e há ódio, há desunião e união. Esta situação é permanente e é sempre dada. Por isso, de certa forma é insuperável. Nem por isso a paz é impossível. Ela pode ser construída. Qual é a estratégia de São Francisco? É enfatizar a dimensão de luz mais que a dimensão de trevas, dar hegemonia ao amor sobre o ódio, faz prevalecer a união à desavença e confiar na vitória da vida sobre a morte. Ao fazer isso, não recalca a dimensão sombria, mas impede que ela ganhe corpo e domine nossa vida. O efeito final é a paz possível. Esta se torna mais segura se for buscada à luz da paz que só Deus pode dar. Cada um pode ser instrumento desta paz divina que fortalece nossas buscas pela paz humana.

IHU On-Line - Quais são as características mais marcantes de Francisco e Clara? Em um de seus livros sobre o santo, o senhor destaca seu vigor e ternura. Como isso aparece na personalidade de São Francisco e como essa personalidade era encarada na Igreja de sua época?
Leonardo Boff - São Francisco representa um dos arquétipos da plena realização humana. Esta é construída a partir de duas forças que constroem nossa identidade que é a dimensão de anima e a dimensão de animus. Com estes termos introduzidos por C. G. Jung , queremos expressar que cada pessoa, homem ou mulher, possui a dimensão de racionalidade, objetividade, de projeto, de determinação na superação de obstáculos, de vontade de ser e de poder (animus). Ao mesmo tempo, tanto no homem quanto na mulher há a dimensão do afeto, da subjetividade, do cuidado, da intuição e da espiritualidade (anima). Eu traduzo estas dimensões como a convivência e integração do vigor com a ternura. Francisco viveu esta integração em sua relação de grande amor com Clara de Assis, exemplo raro na história do cristianismo de como dois seres puros e evangélicos podiam se amar de verdade, sem perder o sentido maior de sua consagração a Deus. Se olharmos a história humana, percebemos que emergem figuras que, de forma exemplar, viveram a ternura e o vigor como Jesus, como Francisco de Assis, Gandhi , Dom Hélder Câmara , João XXIII e, de certa forma, também o Papa João Paulo II . Pelo fato de Francisco realizar estas dimensões de forma seminal, tornou-se uma pessoa livre, podia conviver dentro de uma Igreja de poder sob o Papa Inocêncio III , o Papa mais poderoso de toda a história da Igreja, e simultaneamente andar pelos caminhos de braços dados com um leproso, anunciando a alegria de Deus que é Pai e amoroso e que fazia de cada coisa o sacramento de sua aparição. Esta síntese, assim tão terna e fraterna, nunca mais foi vivida no cristianismo. Mas ele permanece como referência de um cristianismo despojado, alegre, reconciliado com as sombras e confraternizado com todos os seres.

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