Marcel Verrumo 18 de julho de 2012
Era 1982 e o barco hospital argentino Almirante Irizar estava atracado próximo às Ilhas Malvinas. Transcorria a Guerra das Malvinas, na qual Argentina e Grã-Bretanha disputavam o domínio das ilhas Malvinas/Falklands. Dois soldados caminhavam – um apoiado no outro – em direção ao barco hospital. A proximidade revelava dois homens jovens e cansados. Um médico argentino se adiantou:
- O que vocês têm?
- Cure meu companheiro – respondeu um dos soldados, indicando o combatente com uma ferida.
- Mas e você, o que tem?
- Não tenho nada. Veja meu companheiro como está.
- Tire a roupa.
O soldado que levara seu amigo ao barco hospital tirou a camisa, deixando as costas nuas. Uma ferida com pus se desenhou nas costas do soldado. Ele havia sido atingido. O médico argentino apalpou as costas e sentiu o esquile de uma granada. Quando uma granada explode, lança uma série de esquiles, pedaços de ferro que rasgam a pele. Um desses esquiles rompera a região próxima à coluna vertebral do soldado e a acompanhara, sem atingi-la ou a lesioná-la. O médico fez um corte, tirou o pedaço de ferro e desinfectou a região. O soldado não se queixava de nada, não reclamava de dor, permanecia silencioso. Enquanto seu amigo estava com uma ferida de tratamento simples, ele poderia ter morrido ou ficado paraplégico caso o esquile tivesse rompido suas costas a 1cm mais próximo da coluna vertebral.
Quase 30 anos depois, o médico argentino Sosa Amaya se referiria a esse fato como um momento em que Deus esteve presente na guerra. Das faces dos soldados ele já teria se esquecido, mas ainda se lembrava de suas histórias. Principalmente de uma em que ele foi um dos protagonistas.
Tratamento igualitário
Segundo Sosa Amaya, no barco Almirante Iriza não estiveram presentes feridos britânicos. Em relação aos médicos da nação inimiga, ele reconhece que os profissionais respeitaram os tratados internacionais e prestaram a assistência adequada aos feridos argentinos capturados.
Um dia, um médico britânico enviou uma mensagem ao barco argentino informando que carecia de um tipo sanguíneo e de um medicamento anti-hemorrágico. Em pouco tempo, um helicóptero britânico, identificado com o símbolo da cruz vermelha, pousou no navio. Sosa foi ao estoque do barco, separou o sangue e o medicamento solicitados e os entregou ao piloto britânico. Um argentino o questionou:
- Por que o senhor doou sangue ao inimigo?
- Porque nós estamos aqui para salvar vidas e não para destruí-las.
Medicina em tempos de Guerra
Antes de ir à Guerra das Malvinas, Sosa era médico da Armada da Argentina. Na carreira médica, sua especialidade era infectologia; na vida militar, submarino. No início de 1982, trabalhava no Hospital Naval de Buenos Aires quando foi chamado por um inspetor. “O senhor foi selecionado para ser o chefe de sanidade do Barco Hospital ARA Almirante Irizar”, lhe disseram. Duas semanas após o início da Guerra, o médico desembarcou nas ilhas Malvinas no barco hospital sob sua responsabilidade. No veículo, iam traumatologistas, cirurgiões, radiologistas, laboratoristas, farmacêuticos, médicos de diferentes especialidades. Segundo Sosa, só não havia obstetras e pediatras.
Para que os barcos hospitais não fossem confundidos com embarcações inimigas, eles eram pintados de branco com grandes cruzes vermelhas. Durante a noite, permaneciam iluminados. Os barcos se subetiam à constante inspeção da Cruz Vermelha Internacional para a avaliação a respeito do cuidado dispensado aos feridos adversários capturados.
Durante conflitos armados, o exercício da medicina deve respeitar as Leis de Genebra, tradados internacionais que contêm normas para que seja evitada a barbárie e sejam protegidas as pessoas que não participam das hostilidades (civis, médicos e membros de organizações humanitárias, por exemplo) ou que já não combatem (feridos, enfermos ou prisioneiros de guerra). Os tratados foram criados em 1864 pela Cruz Vermelha e, antes da Guerra das Malvinas, sua última versão fora estabelecida em 1949.
Em relação aos profissionais da área de saúde, o documento estabelece que soldados que estejam sob poder dos adversários devem ser tratados com humanidade e sem distinção. Não deve haver diferença entre um combatente aliado e um inimigo. Atentados contra a vida, mutilações, tortura, humilhações e situações que coloquem em xeque a dignidade da pessoa devem ser combatidas.
* Reportagem escrita a partir de uma entrevista que realizei em 2010 com o médico Sosa Amaya na cidade argentina de Córdoba.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe o seu comentário!
Seja bem vindo!
Pascom Porto Feliz