domingo, 21 de fevereiro de 2010

Espiritualidade Carmelita - parte 2

QUEM ERAM OS CARMELITAS DO MONTE CARMELO?







A solidão com Deus no Carmelo é muito antiga, e os eremitas que depois de Elias habitam neste lugar estão ocultos no tempo e no segredo da sua vicissitude espiritual.


Temos de chegar à plena Idade Média, ao tempo da primeira cruzada na Terra Santa para os encontrar, numa época de renovação da Igreja e de busca da pura dimensão evangélica da vida religiosa. Um pouco como acontece hoje, nos séc. XII e XIII, o tempo de Francisco de Assis e de Domingos, a humanidade vive a experiência de grandes mudanças sociais e espirituais e, por conseguinte, de perturbações psicológicas muito vivas e de ideais generosos de renovação.


O mundo feudal já não se bastava a si próprio, com a sua economia fechada, seus horizontes de progresso humano muito limitados. Recomeça-se a movimentar, a viajar, a conhecer e, portanto, a confrontar ideias, costumes, mentalidades. Novamente o dinheiro circula, anteriormente quase esquecido, no ritmo lento das trocas em produtos agrícolas, circunscrito a localidades relativamente pequenas. As relações comerciais entrecruzadas em longas distâncias, tornam-se empresas tão interessantes e excitantes como aventureiras, e muitas vezes audaciosas, estimulando a imaginação, empenhando particulares e grupos interessados em fazer programas, e gerando um estilo de vida leigo com os seus deveres sociais, cobiçado muitas vezes por quem ficou pobre e ligado à terra.


Esta nova riqueza, móvel, feita de metais e pedras preciosas, de mercadorias e barcos, de comunicações e de acordos comerciais, tende a substituir a antiga propriedade familiar imóvel que passava do pai para o filho mais velho com toda a gama de laços e escravidões; torna-se o capital acumulado de negociantes e especuladores, fruto e medida do seu valor pessoal, dos quais podem usar livremente.


É uma riqueza, com o estilo de vida que acompanha, que se infiltra perigosamente mesmo na Igreja, entre o clero, até nos mosteiros, estimulando contrastes de ideias e conflitos pessoais, suscitando invejas e ciúmes.


As condenações oficiais do magistério da Igreja em defesa, por certo não evangélica, destes interesses, correm o risco de não ter em conta a confusão dos egoísmos, e de ficar sobre o papel: é necessário lutar contra o espírito desta riqueza, não somente através da pregação, mas vivendo de novo evangelicamente: na pobreza enobrecida por Cristo como uma bem-aventurança – Bem-aventurados os pobres – e vivida por Ele em primeiro lugar.


Por outro lado, os sinais muito evidentes do desacordo popular com a mentalidade mundana que uma parte do clero fez sua, traduzem-se em vivos protestos, tornando-se às vezes movimentos de espiritualidade em alternativa com a Igreja, das heresias; mais frequentemente, fazem nascer iniciativas generosas de regresso à simplicidade evangélica fora de querelas doutrinais, mas em forte oposição ao mundo rodeado de riscos que não compreendem. Basta lembrar Francisco, quando se despe publicamente restituindo a seu pai, rico comerciante, as suas próprias vestes; e o bispo de Assis apressa-se a cobri-lo, reconhecendo-o, talvez inconscientemente, filho da verdadeira Igreja.



O ideal de Francisco era também, sob uma outra forma, o de Domingos: reconduzir as almas para Deus desobstruindo o caminho dos obstáculos da riqueza e da corrupção; cedo será este também o ideal da nascente Ordem Carmelita; é o sentido da expressão Ordens Mendicantes, pela qual são definidas as novas famílias religiosas.


Quem eram os eremitas que moravam escondidos no monte Carmelo, no momento em que nós começamos a conhecer a sua história?


As cruzadas e a conquista de Jerusalém em 1099, tinham aberto o caminho às grandes comunicações entre a Europa e o Oriente. Desconhecemos, se os primeiros ocidentais a fixarem-se como eremitas no Carmelo, eram cavaleiros ou soldados, letrados ou não, nobres ou plebeus; sabemos somente que eles tinham participado nas cruzadas para visitar a Terra Santa. Eram certamente leigos que tinham escolhido uma vida de penitência, característica da espiritualidade laica nos séc. XII e XIII. Eram conversos (ou penitentes), peregrinos estabelecidos no lugar santo ou eremitas.



Todavia, é-nos hoje difícil orientar-nos entre estas definições de determinadas formas de vida religiosa de então, que não se identificam com a vida monástica regular ou com a dos cónegos (isto é, de padres com vida em comum). Será bom lançar um olhar sobre uma tal multiplicidade de vocações, que testemunham o fervor e a riqueza das diferentes inspirações, para em seguida nos aproximarmos com um melhor conhecimento dos nossos carmelitas.


A vocação religiosa, que a Igreja na sua longa experiência histórica definiu em algumas formas de vida específicas, nasce sempre de um chamamento a seguir totalmente a Cristo, a subir com Ele (ascética) à santidade, e realiza-se aderindo de um modo estável a uma organização reconhecida publicamente pela Igreja e inserida nela. A profissão explícita dos três conselhos evangélicos - pelos votos de pobreza, castidade e obediência - num instituto aprovado, é o acto de consagração definitiva de cada vocação religiosa.


Nos primeiros séculos da vida cristã, as exigências radicais do chamamento evangélico eram vividas, na Igreja local, nas condições sociais e meios mais variados. As virgens e os ascetas praticavam uma vida de continência, alguns permanecendo em suas casas, entregues às ocupações habituais; outros consagravam-se particularmente às obras de misericórdia; outros retiravam-se para a solidão ou viviam em comunidade, muitas vezes chamados para junto do bispo, para viverem em comunidade com ele. Eles constituem na Igreja local categorias muito importantes, mesmo sob o ponto de vista externo e jurídico. Para começar a fazer parte disso, não é requerida a tomada formal da carga das obrigações dos votos religiosos e menos ainda é requerido que isso aconteça ligando-se a um instituto.


A extraordinária expansão do monaquismo, estritamente dito, aparecido no séc. IV, desaparece, de facto, sem fazer desaparecer as outras formas de vida ascética mais expontâneas. Além disso ela provoca e exige intervenções normativas dos bispos e dos concílios, dando origem a uma nova legislação da vida religiosa. Progressivamente ela chega a identificar-se com a vida estável num claustro, sob uma regra e obediência a um superior.


Na prática, a única forma de vida ascética organizada na Igreja, era o monaquismo. A partir sobretudo do séc. IX, entre as várias regras propostas na antiguidade (S. Pacómio, S. Basílio, S. Columbano), predomina no Ocidente a de S. Bento; ela é adoptada pouco a pouco, como norma institucional e guia espiritual por todos os monges que a reconhecem como legislação de base: assim chegam a coincidir fundamentalmente o monaquismo e a Regra de S. Bento.


O movimento de vida apostólica (isto é, o modo de viver de Cristo com os seus discípulos) suscitado pela reforma do papa Gregório VII, realça o ideal comunitário e encoraja a própria vida comum para o clero, baseada não sobre a regra beneditina, mas sobre os costumes e normas tomadas dos diferentes concílios particulares e gerais. Por consequência, talvez por um complexo de inferioridade em relação aos monges que tinham uma regra, foi admitido entre os padres diocesanos que viviam em comum, de conferir um prestigio às suas normas ligando-as à regra de S. to Agostinho.



Em 1005, Urbano II afirma que suscitar a vida apostólica primitiva entre os padres não tem menos mérito do que conservá-la entre os monges; com esta declaração, é praticamente sancionado na Igreja um estado de vida religiosa: a ordem monástica sob a Regra de S. Bento e a Ordem canónica sob a Regra de S. to Agostinho. Mas a esta instituição da vida religiosa reagiram particularmente no séc. XII e XIII numerosos movimentos que pretendem inspirar-se directamente no Evangelho para satisfazer as suas exigências ascéticas. Eles têm dificuldades em reconhecer-se nos mosteiros de tipo tradicional, plenamente integrados no sistema feudal em lugar de prestigio, e desejam procurar fora dos quadros institucionais, um modo de vida que reflicta melhor os valores evangélicos aos quais eles aspiram.


Em polémica com as Ordens tradicionais, eles não aceitam que a sua vida seja julgada menos perfeita somente porque vivida, sim, fora das Regras, segundo o Evangelho. Portanto o conceito de religioso assume um sentido mais amplo até compreender aqueles que, moldando a sua vida religiosa nos costumes tradicionais, vivem fora duma comunidade: uma forma de vida que tem o seu reconhecimento de actualidade justamente no período de tempo que interessa os eremitas do Carmelo.

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